Antes das 23h – uma crônica de autor timonense
Antes das 23h
Por Daniele Lima
Raíssa nunca voltava antes das 23h. Caminhar sozinha pelas negras ruas parecia estranho e assustador para a maioria das moças naquela idade. Andar desajeitada num salto desconfortável não era mais problema. Subir as ladeiras mais íngremes é que ainda deixava certa dificuldade. Ao longe só se via silêncio. As ruas estavam, a cada hora, mais escuras e abandonadas. Raíssa tinha quase 19 anos.
Quando a vi, pela vidraça do carro estupidamente quebrada, Raíssa rodopiava em um poste semi-iluminado, então tudo veio à tona. Num baque infeliz, senti que Raíssa podia ser eu ou qualquer uma. O destino é um baralho pouco confiável, simulando despedidas, arrebentado laços e delineando exílios. Mas Raíssa tinha a própria lua, confiança e perseverança. Quisera eu ter algum daqueles gestos tão macios que se desenrolavam no seu sutil balé solitário.
Seu cabelo era curto, pernas longas e feições sérias e graciosas. Enfática. Parecia caminhar numa nuvem de ilusão, cheia de falsas promessas. E seguia, serpenteando, muito introspectivamente. Sem perceber qualquer observação que qualquer ser naquele cenário cruel lhe dirigisse. Sua pele branca sob a luz ficava quase perolada, marfim, algo difícil de descrever com cores. Mas por que ela precisava está alí? Perguntei-me drasticamente, com a respiração suspensa pela dúvida. Quem decide entre lágrimas e risos, entre justiça e injustiça, entre ódio e resignação? Quem condena meninas de 19 anos e depois foge, ileso de culpas, sem sequer assistir a essa fria condenação?
As dúvidas iam em círculos pela minha mente, assim como Raíssa ia e vinha ao redor do poste. Silenciar quando faz silêncio, apagar as luzes quando escurece. Era hora de seguir em frente ao sinal verde. Quietos e em fila avançamos quando ele se abre mas sem saber que a qualquer instante ele pode também se fechar.
A nossa ilusão são ruas úmidas pelas quais Raíssa anda. E em seu mundo vermelho, tudo são faíscas, resquícios, sons que se dissipam lentos e quando amanhece os sonhos são postos na balança, leves demais pelo contrapeso, são erguidos ao alto e flutuam para longe.
Daniele Lima é jornalista e mora em Timon