Travessia – Uma crônica da jornalista Daniele Lima

Travessia

 

A estrada que se molda a frente é abstrata. Não sinto cansaço e nem consolo. É mais um dia para deixar tudo partir. É mais uma vez a estranha sensação de não ter. E o chaveiro e as lembranças e tudo que será esquecido. No mais breve dos instantes, a mais profunda ausência. A tropa de horizontes impossíveis marchando para mais longe. A delicada nuvem cinza que nunca passa. E todas essas coisas que pareciam boas. Por alguns instantes decifrar o enigma da solidão. E contemplá-lo de perto. A luz escorre pelas lágrimas mais genuínas. Essa luz tão antiga que brilha em mim. E porque ela não me deixa na escuridão, eu resisto. Fria e alta, como se só eu bastasse. E sob o pó de outras vidas, escrever meu nome abrupto. Ríspido e espectral. Como um vulto. Quase pronunciado com incerteza. A existência se assemelha à água, tudo que faz é pesar. Não há como senti-la e nem acomodá-la nos braços. 

 

Estamos pálidos, perdidos, tão descomunalmente separados. Segurando as rédeas de dois mundos devastados. Longe da manhã. Da hora mais feliz de todas. Longe dos caminhos agraciados com flores. Longe do som que faria dormir e do riso que faria viver. A eficácia do amor não pode ser provada. E estou numa linha tão severa e prestes a ser cortada. Bailando sobre tudo que não posso mais sentir. Sob um sol que vibra incessantemente. E não há o que buscar. Paredes brancas, as grades da janela, a luz do amanhecer sobre tua pele fria. O ritmo da vida que não veio. E as amargas palavras perdidas. Sem pronúncia, esperando um pouco de vida. Não é cedo, nem tarde. É apenas breve. Ruidoso. Como quem rasga. O som da voz daqueles que te amavam se dissipando na sua mente. As madrugadas insones.Sob este teto onde já tivemos tanto. E neste chão onde as marcas resistem. 

 

Sonhos errantes e traiçoeiros nos quais não há como crer. Fugas. Pássaros na calçada. Vivos e mortos, todos de mãos atadas. É estranho como podemos sentir tão pouco após sentir tanto. Uma serenidade turbulenta. Na chuva sobre o rio. Um espetáculo distante. Como a saudade. O clima que nos persegue nunca foi tão grave. Neste reino onde meus súbitos súditos se alimentam da minha dor. E o sol que brilha mas não aquece. As profundezas distorcidas do espírito. Deixe que perdure ou não permita que aconteça. Essa deveria ser a única regra. Mas não temos controle. Estes lugares onde eu ouvia teu riso. E essas músicas que contavam uma história tão antiga. Se eu quisesse afundar daqui. Para mais e mais longe. Margens de uma estrada infinita. As ladeiras do coração ambíguo. A cada fôlego, aumenta a indecisão. Mas não há como decifrar o que se passa nestas pontes. Enquanto tantos carros trafegam incessantemente. Tudo ruge, selvagem. As piores e as melhores sensações. Todos os dias para lá e para cá, em choque. Degladiam-se. 

 

Daniele Lima é jornalista e mora em Timon

Elias Lacerda

Jornalista apaixonado pela notícia e a verdade

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