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Túnel do Tempo: – O Mingau de dona Joaninha e o cuscuz de Dona Lourdes e outras histórias de nossa Timon

POR GIL ALVES DOS SANTOS.

1 – Estamos nos anos de 1956 e 1957 – e já se vão 60 e alguns anos. Éramos ordeiros e pacatos. Quando não se estava de frente para o rádio ouvindo a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, até hoje, “tinindo” de boa, com certeza, sentados, na “boquinha de noite”, nas calçadas e portas de casa jogando conversa fora sem o menor risco de assalto. Ao longe, ouvíamos a música brasileira rodada nos Estúdios de “A Voz de São José”, do saudoso e grande líder, PADRE DELFINO. A Delegacia de Polícia, única, estava localizada ali na Rua Aquiles Lisboa, residência, por algum tempo, da família Viana. Padaria, também só havia uma, com o nome de sua proprietária – Dona Carmina.

2 – Ainda mergulhado no passado, digo que os tamancos ficaram no canto do quarto, pois não mais faziam parte de minha indumentária escolar. Na mesinha de estudo, iluminada por um fraco bico de luz (Ao primeiro dos três apitos da Usina, em Teresina, a lamparina já estava acesa) repousava uma “Crestomatia;” um “A História do Átomo”, e um exemplar do terrível “A Metamorfose” de Kafka, tomado por empréstimo da biblioteca do Arquivo Público, em Teresina, então Casa Anísio Brito. Nela bebi as primeiras luzes do conhecimento – por falta de inteligência não os aproveitei bem – lendo o Tesouro da Juventude, cuja credibilidade jamais poderia ser posta em dúvida, pois recomendado pelo insigne mestre cearense de Viçosa – Clovis Bevilaqua, muito conhecido dos militantes da advocacia.

3 – Por um tempo eu me trancava, recluso, imaginando-me a barata preta de Kafka, fobia, mais tarde, bem curada no “eito” de uma roça de 100 (cem) tarefas desbravadas por meu pai Genésio, no povoado Tapera, divã que Freud não conheceu. Sem tamancos, agora eu usava as botinas da Escola Industrial de Teresina, algo próximo de uma academia militar, até hoje, um dos melhores centros de estudos e ensinamentos técnicos deste Brasil. A calça, e outras peças, que

recebíamos de graça, era vincada de azul, gomada com o ferro em brasa e um pouco de tapioca ou goma – daí o verbo gomar – diluída em água. Era o máximo. Vejam os nossos mestres daquela época, verdadeiras celebridades:- Clementes Fortes, Pantaleão Carvalho, Murilo Couto, Arlete Campos, Cloris Carvalho, Cláudio Ferreira, e uma constelação de notórios e notáveis catedráticos. O respeito, que se não confunde com temor, era algo mais do que sagrado. Gêneros apenas dois – o masculino e o feminino. Reinos – apenas os da natureza e o da Inglaterra, que é secular.

4 – A década de 50 já estava no fim. Éramos três jovens estudantes da Escola Industrial de Teresina. Atraídos pela lei natural de que os similares se aproximam – similis simili gaudet – sabido que os humanos e os bichos se agrupam, repito, em face da seleção natural. Por volta de cinco e meia da manhã, nós, bons amigos, companheiros, unidos pela inópia franciscana, que não se confunde com miseráveis, nos encontrávamos na calçada do Mercado Central de Timon, onde, com algumas moedas, fazíamos o café da manhã:- eu, hoje bancário e formado em Direito; o Carlos Machado Coelho, funcionário fazendário do Estado do Maranhão; Francisco Marques, oficial da Polícia Militar do Piauí, atualmente devotado aos ofícios de sua segunda vida, traçados na régua, no prumo, na pedra polida e no compasso: – a Maçonaria. O padrão monetário era o Cr$, dividido em centavos. Eu tinha uma mesada de Cr$2,00 – duas cédulas de Cr$1,00 – aquela que tinha o rosto do Marquês de Tamandaré. Neste ponto, falando dos antepassados, me vem à mente o volume MEMÓRIAS, da coleção maravilhosa de Humberto de Campos, também maranhense. Me recordo que no prefácio ele escreveu:- “Até os vinte anos, há dentro de nós, adormecida, mas pronta a despertar, uma alma que não conhecemos.” Então, pela elevação do espírito e da alma que sejam bem vindas as boas lembranças!

5 – Eu falei café, mas café na verdade, nunca foi. Era o famoso e gostoso MUCUNZÁ (Mugunzá) da Dona Joaninha, que dá título a esta crônica, na linguagem malandra e por ser substancioso, forte, nutritivo, conhecido como chá de burro. O ponto era na calçada externa do Mercado, hoje totalmente desfigurado, de frente para a hoje Praça de São José. Estabelecida ao lado direito da quitanda do

“Seu” Afonso, ali ficou por mais de 30 anos, que vendia do “abano” até bainha para foice. Internamente, separada dos magarefes – tenho na lembrança o Pedro Estevam e o Cuim, em cuja proximidade reinava absoluta a Maria do Cheiro Verde, zangada quando era apelidada de Pazinha (mas lhe peço desculpas, pois a referência é de carinho, do bom convívio) – um montanhoso e fumegante cuscuz de milho, feito com massa vinda do pilão de Dona Lourdes. Joana e Lourdes estão vivas e operosas, creio que já aposentadas. Dona Lourdes tem na filha e herdeira, no mesmo local de antanho, conhecida pelo simpático nome de PITUCA como continuadora de seu nobre e honroso ofício.

6 – Descíamos na pista direita, não tão larga, da Avenida Getúlio Vargas em direção às canoas do Mano Véio, com Alzira Simão(quem não se lembra dela!) e mais estudantes e trabalhadores “indo” para Teresina; do Izaque; do Biné; do Manelão; do Capivara; do Butiquim. Moças elegantes, estudantes, vergando o uniforme da Escola Normal e no embalo da canção “Normalista” (Letra de David Nasser e música de Benedito Lacerda, de 1949), na voz de Nelson Gonçalves, tornava animado o dia-a-dia naquela avenida:- Maria José Sá, Rosalina Carneiro (A Mocinha), Evanda Carvalho e sua irmã Evanilda, e a mana Francisca, hoje professora aposentada; e outras que, no azul e branco de suas fardas, traziam as cores do céu, que não é colorido, mais próximas de nós, os mortais; e, de tão numerosas, na alvura de suas blusas, pareciam cisnes flutuando na suavidade das águas de um lago. Tudo na mais perfeita e santa harmonia. O respeito era no absoluto. Não se conhecia a palavra “ASSÉDIO”, um vírus que a nossa geração não conheceu.

7 – Da Escola Industrial, eu, o Carlos, o Marques, o Valdemir Morais, o Filadelfo. Outros estudantes: o Zeca Babau Costa; “Seu” Dim, o Arnóbre. Do Diocesano, com o seu uniforme, que lembrava a academia das Agulhas Negras, só me lembro do Nonato da Dona Carmina. Colégio particular era para poucos. Segundo diziam os fofoqueiros da turma da “CÃINDINHA”, tudo moleza, em oposição à dureza e rigor do ensino público. Hoje, infelizmente, ocorre o inverso.

8 – Não se pode esquecer do Zé Pretinho, que no seu jegue e duas ancoretas, vendia água – a lata era a medida – potável nas ruas da nossa boa Timon. O Nilo, ligeirinho, com seu gostoso “pão quente” vindo da padaria da Dona Carmina. O fígado No Cincinato, ah que coisa gostosa, no azeite de côco do Dancinho, preparado nas mãos finas da Jesus Serrate, quando o Daniel Patrício não lhe atrapalhava.

9 – Não tenho fontes escritas dos fatos aqui narrados. São feitos ao sabor e no correr da esferográfica, sem borrão, rascunho, sem nada. A Vânia Assunção ou Vânia do Padeco, quando tenho dúvidas, é minha enciclopédia viva. Por isso, estou perdoado de eventuais erros, troca de nomes ou apelidos indevidos, certo que carinhosos. Quero apenas retratar, com a inópia de meus conhecimentos, um pouco e de forma reduzida do que foi esta nossa e boa Timon. Novamente, sem a veleidade de erudição, trago algumas linhas do Tomo “MEMÓRIAS”, de Humberto de Campos:- […], os rochedos, em que batí, mesmo esses me foram proveitosos, e sê-lo-ão, talvez aos que me lerem. Conhecendo-os, saberão aqueles que vierem depois de mim, que devem evita-los, procurando, na viagem, caminhos mais limpos e seguros. Como nas cargas de cavalaria de Napoleão em Waterloo, os cavaleiros que vão na frente da Vida, devem soterrar o fosso para a passagem vitoriosas dos que vêm atrás.”

10 – Minhas desculpas pela falta de síntese neste texto, que está sendo longo. Por oportuno, devo dizer que o estilo de escrever é próprio de cada pessoa, nas palavras de Louis de Leclerc, conhecido como Buffon. É um DNA, cada um tem o seu, daí a impossibilidade de “humorizar” as minhas crônicas. Não se muda de estilo como se troca de escova. É isso!

11 – Se o amigo Elias Lacerda consentir, volto breve.

 

GIL ALVES DOS SANTOS, é aposentado do Banco do Brasil, bacharel em Direito ([email protected]). Telefone e Zap: 86-9972-0524.

(Crônica já publicada neste blog do Elias Lacerda, mas agora com texto reescrito)

6 Comentários

  1. Pessoas como essas, que apesar de relembrar o passado, faz questão de expor nas entrelinhas oo seu precoprecon enraizado, quando fala: ” Gêneros apenas dois – o masculino e o feminino.”
    Quero lhe informar, Sr Gil Alves, que sempre, em todos os tempo, houveram pessoas que bao se identificavam com o seu corpo, que não convivia bem com ele naquele gênero, e isso lhe causa/causavam sofrimento.
    Espero que vc, inteligente como demonstra ser, faça uma pesquisa sobre o tema antes de expor seu preconceito.

    1. Acredito que o autor do texto não teve a intenção de ferir quaisquer pessoas, muito menos ser preconceituoso. Como sabemos, no tempo relatado, não se fazia nenhuma referência com atitudes relativas a esse ou aquele gênero.

  2. bom dia, quero parabenizar o Gil, pelas lembranças escritas no artigo, sua escrita tras ao presente, um passado que vivenciamos em nossa Timon, eu particularmente e minha geração passam por todos esses episódios,(somos de uma geração depois) é como um filme retro em nossa mente. Se o texto tivesse algumas imagens, do porto das canoas, do geladinho do seu sitonio na praça, do alvorada club, do centro artístico com a coroação das rainhas , dos finais de senanas nas areias do rio parnaiba, enriqueceria mais anda, fica minha gratidão ao Gil, que conheci ainda jovem, não só ele, mas todos de sua família, Betim, fafa, elias, naty, angelica, pois eles moravam proximo a minha residência,na rua odilo costa.

      1. Tudo isso que vc falou eu me lembro, eu era menino na época, todo dia eu atravessava de canoa de madeira bruta empurrada com uma vara, me lembro dos canoeiros. Lembro de alguns nomes, Seu Isaque, Carioca e Antonio sozinho. No mercado tomei muito mingua da dona Lurdes, cortava cabelo com o ze, tomava sorvete no Nogueira, fazia compras no comércio do Chico Holanda, ia na missa do saudoso padre Delfin, compra arroz na usina da dona Carmina, gostava muito de assistir jogos no Miguel Lima que não tinha muro e nem grama, vi um senhor chamado Garrincha transmitindo o primeiro jogo de futebol de timom, numa rádio pirata que deu bronca, porque teve interferência nas rádios de Teresina. Tudo isso no início dos anos 60, tempos maravilhosos, inesquecíveis❤

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Elias Lacerda

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Elias Lacerda
Jornalista apaixonado pela notícia e a verdade