Aros da Memória
Por César William
Em memória do meu pai, Wilam David Costa (02/11/1939 – 01/06/2019).
Dia de Finados para mim nunca significou Dia de Idos, mesmo respeitando quem já partiu, da minha família e da de todos, aqui e no mundo. Sempre me foi data irreverente, por se tratar do dia em que nascera meu pai. Dois de novembro era-me um paradoxo: enquanto muitos passavam para cemitérios levando flores e velas, eu acendia um canto sob a irreverência daquele que ao nascer já trazia consigo sinais de estranheza na linha existencial.
Este ano é diferente, rendo-me duas vezes em torno de um espaço no calendário. O paradoxo desapareceu, porque meu pai saiu de cena, desde o dia primeiro de junho deste duro ano. Agora, ele só passeia em minha memória, em vastas e intermináveis estradas e caminhos e veredas e atalhos urbanos e de campos mil.
E saio com ele, sobretudo hoje, na garupa de uma bicicleta, especificamente em uma magra negra Monark 79, comprada no Armazém Paraíba a troco de muitos calos e rugas, igual a tantas. E saio com ele, carregando cartuchos com pólvora do não esquecimento na espoleta deste escrito.
Ele foi um mestre de obras, erguendo muros e desenhando chãos nobres com recortes de mosaicos, azulejos, ladrilhos e lajotas, desde a infância. Foi um mestre do verso raro escrito, fraseando suas dores num humor muitas vezes disfarçado. Um filosofante, capaz de destronar qualquer rei de reino ruim.
Meu pai era assim: nem meio nem fim. Um contador de causos em que geralmente ele era o personagem central. De coisas consideradas pelo senso comum como algo insignificante, conseguia tirar cenas cinematográficas tão bem narradas e arranjadas a ponto de superar Laurel & Hardy, Chaplin, Mazzaropi e Grande Otelo, de uma vez só, com a diferença de que suas histórias tratavam o seu real, (quase) surreal, sem ensaios e sem cortes.
Era pedreiro, por ordem das pedras, pois trazia consigo espírito de artista, não de qualquer artista, mas de um examinador das coisas secretas que essas pedras e o barro lhe diziam e do que a natureza lhe traduzia. Um ambientalista nato – um ser em extinção. Foi-se. Urticas e tiriricais fecharam veredas, por onde outro humano jamais trilhará, não com sua habilidade e leitura do ambiente, do seu local predileto – as matas.
Foi-se um homem que criava suas próprias leis, sem transgredir as leis dos homens. Foi-se um misantropo, um eremita, um pária, um poeta, às vezes pateta, diante da frialdade desse vasto mundo. Nobre, sem nobreza; rico, de uma riqueza que não atrai quase ninguém; alegre, sem a certeza do riso; caçador, sem presa premiada. Foi-se um operário amante de ópera, bossa, jaez, bangue-bangue, de boas telenovelas e da literatura, meu melhor ouvinte.
Mas, ficou sua boa filosofia e esta se renova em mim, em meus irmãos e naqueles que o conheceram, a partir de um mundo ao qual somente ele cabia, sem cabimento para imposições de normas e receitas de um habitat desgastado, caduco e (muitas vezes) tolo, do qual fugia. Bom descanso meu, pai. Por aqui, muito bangue-bangue, raros heróis e possível poesia resistindo a bestialidades. Obrigado, por mais esta carona na sua Monark 79. (Fique com Deus).